Nas últimas semanas as lives NPC começaram a ser assunto nas redes sociais e na mídia. Mas o que seria isso, afinal?
NPC é a sigla para Non-Playable Character, ou Personagem Não-Jogável, expressão saída dos games. Nos jogos, como o próprio nome já diz, esses personagens não podem ser escolhidos e não estão sob o controle do jogador, mas existem no universo do jogo. Geralmente, esses personagens seguem um papel passivo na história, executando comandos pré-determinados, como se deslocar do ponto A ao ponto B. Alguns deles, no entanto, podem influenciar a jogabilidade ao responder a interações recebidas.
Pensando nisso, os usuários do TikTok decidiram utilizar as lives já existentes na plataforma, com envio de presentinhos, em Lives NPC. Que nada mais são que eventos online ao vivo, em que os seguidores dos perfis são convidados a interagir com personagens interpretados pelos anfitriões das lives (muitas vezes representados por influenciadores digitais, atores e streamers). Nesse cenário, o espectador não apenas assiste passivamente a live, mas também molda a narrativa através de suas escolhas e interações. Ao enviar um presente (que se torna dinheiro), o usuário “obriga” o anfitrião a executar algumas ações. Isso cria uma experiência envolvente, mas ao mesmo tempo, questiona a natureza da realidade, da privacidade e da humilhação.
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À medida que a audiência envia presentes ou contribui com dinheiro, que são representados por ícones visuais na tela (como flores, sorvete, etc), os streamers reagem com respostas verbais e gestuais específicas e se inicia processo um ciclo em que o público paga para influenciar as ações futuras do personagem. Embora as performances possam parecer extravagantes, infantilizadas e, ocasionalmente, fetichizadas, elas se transformaram em uma fonte de renda para alguns criadores de conteúdo em todo o mundo.
Apesar de parecer um comportamento inocente, nos faz questionar até que ponto estamos dispostos a abrir mão de nossa privacidade, e até dignidade, em nome da conectividade, entretenimento e dinheiro. Essa tendência, que parece ter saído diretamente de um episódio de Black Mirror, nos convida a refletir sobre as implicações do nosso desejo por experiências digitais cada vez mais imersivas. Em entrevista para a Fast Company Brasil, a especialista em creators e influenciadores, Ana Paula Passarelli afirma: “Em uma sociedade que está faminta, que precisa de dinheiro, a humilhação se torna lucrativa”. Segundo matéria do site estamos diante de “busca por dinheiro, o sonho de ser influenciador, a automatização do trabalho, a precarização algorítmica, as plataformas sem moderação e a autoexposição sem freios em troca de audiência”.
Similaridades com Black Mirror
O seriado Black Mirror, criado por Charlie Brooker, explorou em suas temporadas as relações complexas entre a tecnologia e a sociedade. Muitos episódios apresentam cenários futurísticos em que a tecnologia afeta a privacidade, a moralidade e a própria essência da humanidade. Ao observarmos a ascensão das lives NPC, podemos traçar paralelos com alguns episódios mais pertubadores de Black Mirror.
1. Fifteen Million Merits (Quinze Milhões de Méritos – dezembro de 2011): Estrelado por Daniel Kaluuya (Corra e Não, não olhe!) que vive em uma sociedade é viciada em entretenimento digital, na qual as pessoas são incentivadas a gerar energia elétrica por meio de exercícios físicos enquanto assistem a programas. Isso nos faz questionar até que ponto as lives NPC estão motivando os espectadores a investirem tempo e energia emocional em experiências digitais.
2. Nosedive (Black Mirror: Temporada 3, Episódio 1): Este episódio, estrelado por Bryce Dallas Howard, retrata uma sociedade em que as pessoas são classificadas constantemente por suas interações sociais. A busca desenfreada por aprovação social é semelhante à necessidade de validação nas redes sociais, que também é uma parte fundamental das lives NPC, na qual os espectadores podem votar e influenciar a narrativa.
3. White Christmas (Black Mirror: Temporada 2, Episódio 2): No episódio, a personagem principal, Victoria, acorda sem memória em um ambiente estranho e logo descobre que está sendo perseguida por pessoas que a filmam com seus celulares. Sem memória e é perseguida por pessoas que filmam sua agonia com seus smartphones, descobre-se que ela é uma criminosa condenada a uma punição cruel em um parque temático, onde sua memória é apagada repetidamente, enquanto as pessoas a perseguem e a torturam. é uma crítica a cultura de voyeurismo e nossa dependência excessiva de smartphones para documentar eventos em vez de ajudar os outros. também questiona a moralidade de punições extremas e desumanas em busca de entretenimento, que podem ocorrer em algumas lives NPC.
Lives NPC: a fronteira entre realidade e ficção
Assim como em Black Mirror, a correlação entre as lives NPC e o seriado nos faz encarar o lado mais obscuro da conectividade digital. Estamos dispostos a sacrificar nossa privacidade e nossa identidade pessoal em busca de experiências cada vez mais imersivas? As lives NPC, apesar de serem uma forma inovadora de entretenimento, também levantam preocupações sobre o controle de dados, a manipulação da audiência e a perda da nossa autenticidade.
A relação entre as lives NPC e Black Mirror nos alerta para a importância de questionar o impacto das tecnologias emergentes em nossa vida. Enquanto buscamos experiências cada vez mais envolventes e imersivas, não podemos ignorar as implicações éticas e sociais que surgem dessa busca. Devemos continuar a refletir sobre como equilibrar a conectividade digital com a preservação da nossa privacidade e identidade. Afinal, o futuro digital que estamos criando pode muito bem ser o cenário de um próximo episódio de Black Mirror, a menos que estejamos atentos às consequências de nossas escolhas.
E como fica a Saúde Mental?
As Lives NPC, assim como qualquer forma de entretenimento digital interativo, podem parecer inofensivas no primeiro momento. Mas é importante os possíveis efeitos psicológicos nos usuários. Segundo o Médico Hebiatra Felipe Fortes, em seu perfil no Instagram, as lives NPC “são algo completamente sem conteúdo amorfo e você não vai para lugar nenhum. Então as pessoas estão lá fazendo algo que pode até ser meio humilhante, e essa é uma grande discussão também… é um terreno muito grande para haters ficarem xingando as pessoas que estão ali, (…) mas que estão fazendo isso por um único motivo: grana”. Ainda não temos tempo, nem estudos para poder prever ou verificar se os impactos são grandes ou permanentes. Mas é importante conversarmos com, principalmente, os jovens sobre o uso dessas tecnologias.
O importante é conhecermos essas novas tendências tecnológicas, para assim, podermos avaliar seus impactos e suas consequências.